sábado, 21 de julho de 2012

Regeneração da espinal medula - o realizar de um sonho?

Ana Sofia Costa

A lesão da espinal medula (SCI) pode ser definida como uma lesão traumática, que resulta num défice funcional, conduzindo a uma paralisia severa e permanente. Funções e estruturas associadas são perdidas através de um processo secundário complexo (Hernándeza et al, 2011). Este é um problema de saúde de grande incidência na população mundial, cujas consequências biopsicossociais podem ser devastadoras. Desta forma, ao longo de muitos anos, tem-se assistido a um grande esforço da comunidade científica em descobrir um processo terapêutico capaz de melhorar a qualidade de vida das pessoas afectadas pela SCI.

A revista Science, na sua publicação do dia 1 de Junho de 2012, apresentou ao mundo um artigo de investigação realizado pela equipa de Grégoire Courtine, com o título Restoring voluntary controlo of locomotion after paralyzing spinal cord injury, que tem gerado uma enorme curiosidade e interesse por parte dos média e restante comunidade científica e cultural. O resultado do trabalho de cinco anos dos investigadores da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, foi recompensado com uma bolsa de 9M de euros com o objectivo de dentro de um ou dois anos, realizarem ensaios em humanos no Hospital Universitário de Balgrist, em Zurique.

Focando o desenvolvimento do estudo, esta equipa partiu de 2 pressupostos cientificamente comprovados: 1- treino promove mudanças neuroplásticas no SNC capazes de restaurar a locomoção na lesão severa, incompleta, da espinal medula (EM); 2 - em combinação com a estimulação eléctrica epidural dos segmentos lombossagrados, a reabilitação, baseada na actividade, pode restaurar movimentos depois da paraplegia motora completa. Atendendo a estes conceitos, eles ambicionaram restabelecer o comando supraespinhal da locomoção, através da remodelação dos circuitos neurais poupados. Desta forma, pensaram em desenvolver estratégias de controlo automático, por forma a melhorar os resultados da reabilitação.
Começaram por provocar uma SCI a 27 ratinhos. Procederam a uma hemissecção lateral esquerda a nível de T7 e a uma hemissecção lateral direita a nível de T10, deixando um espaço de tecido intacto (T8/T9). Os ratinhos sofreram uma perda completa das funções dos membros inferiores.
De seguida, aplicaram um estímulo electroquímico nos segmentos L2 e S1, com um cocktail de agonistas dos receptores dopamina e serotonina e estimulação eléctrica epidural, por forma a activar as vias sensitivas, essenciais ao controlo da locomoção.


Dividiram os 27 ratinhos em 3 grupos de controlo: 10 não foram treinados; 7 foram treinados no tapete rolante; 10 foram treinados no solo, com apoio de sistema robótico. Este sistema consiste numa prótese que posiciona os ratinhos bipedalmente, providenciando apoio vertical e lateral, mas que não facilitava a locomoção em nenhuma direcção. Foi necessário activar a participação através de uma recompensa (chocolate), por forma a motivar os ratinhos a iniciar locomoção.


Os ratinhos treinados no tapete rolante durante 9 semanas não iniciaram movimentos voluntários no solo. Apresentavam movimentos involuntários e até alguns paços voluntários, mas sem coordenação locomotora. Os ratinhos treinados no solo apresentaram os primeiros paços voluntários 2 a 3 semanas após início de treino e 6 semanas após foram capazes de iniciar e manter locomoção por longos períodos de tempo. 2 a 3 semanas adicionais de treino conseguiam subir escadas e contornar obstáculos.


Analisando os resultados, verificaram que ocorreu uma remodelação extensiva nas projecções intra e supraespinhais, com aumento significativo do número de núcleos neuronais no corno ventral e intermédio da substância cinzenta da EM. Inclusive, as vias descendentes corticoespinhais contornaram as lesões da EM, inervando também a substância cinzenta do lado esquerdo a nível de T8/T9. Também no tronco cerebral foi observado um aumento na densidade de projecções corticais, a nível dos núcleos vestibulares, substância reticular e pirâmides. 


 Os neurónios torácicos assumem papel crucial na restauração da locomoção voluntária, comprovado pela ablação do movimento quando a EM, a nível de T8/T9, foi injectada com receptores NMDA. O córtex motor também influencia controlo da locomoção, tendo sido aplicados vários testes para o comprovar, entre eles a administração de GABA no córtex motor esquerdo, com inibição dos movimentos voluntários. Nas duas situações os movimentos eram recuperados quando o sistema robótico estimulava o início da locomoção, demonstrando que as vias descendentes não eram afectadas, apenas o comando do estímulo.
Concluiu-se que o treino no solo (sistema robótico+estimulação electroquímica) promove plasticidade a nível dos sistemas axonais derivados do córtex e tronco cerebral e que potencia os circuitos intraespinhais a nível da sua capacidade de contornar lesões e expandir potenciais terapêuticos a outros circuitos. Os treinos passivos (tapete rolante) promovem a plasticidade sublesão, mas não estimulam a remodelação das vias descendentes. Os ratinhos não iniciam movimentos voluntários.
Embora demonstrados resultados únicos e promissores, algumas questões se levantam quanto ao sucesso do futuro programa: é necessária administração de cocktail de neurotransmissores e estimulação eléctrica (risco/benefício); os ratos só caminhavam com patas traseiras, visto que se fossem colocados na sua posição anatómica, as patas dianteiras arrastariam o corpo, não comandando as patas traseiras. Ou seja, os resultados não foram obtidos na posição biomecânica normal do corpo em questão; sem o robot e o apoio subjacente, encontrariam os mesmos resultados?; os resultados seriam idênticos no caso de outras lesões traumáticas?

Aqui fica demonstrado que “nada é impossível, basta acreditar” (Christopher Reeve). 
E que o chocolate tem um enorme poder motivador :-)


Bibiografia

Courtine G. et al – Restoring voluntary control of locomotion after paralyzing spinal cord injury. Jun/2012. Science, vol. 336

Hernándeza, J.; Torres Espína A.; Navarro X. - Adult stem cell transplants for spinal cord injury repair: current satet in preclionical research. 2011 Set; 6(3): 273-87


Coutine G. et al – Transformation of nonfunctional spinal circuits into functional states after the loss of brain input. 2009. Nature Neuroscience, vol 12 

Sem comentários:

Enviar um comentário