quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Nefrotoxicidade induzida por etilenoglicol

Helena Alves

Com esta publicação pretende-se fazer a correlação da histologia com a prática clínica, dando ênfase à importância da histologia no diagnóstico precoce da insuficiência renal aguda induzida por ingestão de etilenoglicol. Para isso recorreu-se ao livro Histologia Básica, 9ª ed e a vários artigos publicados na PubMed, tendo-se feito uma revisão bibliográfica.

Sistema Urinário
O sistema urinário contribui para a manutenção da homeostase, produzindo a urina, através da qual são eliminados diversos resíduos do metabolismo, além de água, electrólitos e não electrólitos em excesso no meio interno. É constituído por 2 rins, 2 ureteres, uma bexiga e uma uretra. A urina é produzida nos rins, passa pelos ureteres até à bexiga e é lançada para o exterior através da uretra. (Fig.1)



Figura 1


AlAlinhar à esquerdaém de regular o equilíbrio de água e electrólitos no organismo, os rins também secretam hormonas, como a renina, que participa na regulação da pressão sanguínea, e a eritropoietina, uma glicoproteína de 30kD, que estimula a produção de eritrócitos.


O rim é um órgão par, situado na cavidade abdominal, de cada lado da coluna vertebral e ao nível das últimas costelas. Tem a forma de um feijão, com o peso de aproximadamente 120 gr a 160 gr, de cor vermelho-escura. É constituído por uma cápsula fibrosa, fina e resistente, o cortéx e a medula. (Fig.2)

Figura 2


A medula é constituída por 10 a 18 pirâmides de Malpighi, cujos vértices fazem saliência nos cálices renais. Estas saliências são as papilas, sendo cada uma delas perfurada por 10 a 25 orifícios (área crivosa). Da base de cada pirâmide saem 400 a 500 raios medulares, que penetram na zona cortical.
Cada lobo renal é constituído por uma pirâmide pelo tecido cortical que recobre a sua base e os seus lados.
A unidade funcional do rim é o nefrónio (Fig.3). Cada nefrónio é constituído por uma parte dilatada, o glomérulo de Malpighi, pelo túbulo contornado proximal, pelas partes delgadas e espessa da ansa de Henle e pelo túbulo contornado distal; estas estruturas estão envolvidas por uma lâmina basal que se continua com o escasso tecido conjuntivo do rim. Os glomérulos e os túbulos contornados (proximal e distal) são corticais, enquanto as duas porções da ansa de Henle, rectilíneas, encontram-se na medula.(1)

Figura 3

Na medula observam-se os tubos colectores e a ansa de Henle.

Figura 4
Legenda: A estrela indica um túbulos colectores revestidos por epitélio cúbico simples.
A seta aponta um segmento delgado da ansa de Henle.


No córtex podemos observar os glomérulos de Malpighi, os túbulos contornados proximais e os túbulos contornados distais. Cada uma destas estruturas tem características histológicas típicas.(1) Figura 5

Legenda: D - túbulo contornado distal G – glomérulo de Malpighi P – túbulo contornado proximal

Vamos dar mais ênfase ao cortéx, mais propriamente aos túbulos renais proximais e distais.


Características histológicas típicas dos túbulos renais
Túbulos contornados proximais

O túbulo contornado proximal compreende 2 porções: uma inicial, tortuosa, situada próximo do glomérulo renal, e uma parte rectilínea que penetra na medula e continua-se com a ansa de Henle.(1)
Figura 6

A parede do túbulo proximal é formada por epitélio cúbico simples.

As células desse epitélio têm o citoplasma fortemente acidófilo devido à presença de numerosas mitocôndrias alongadas.
A porção da membrana celular em contacto com o lúmen do túbulo apresenta numerosas microvilosidades que formam uma orla em escova.
Os limites entre as células destes túbulos dificilmente se observam ao microscópio ótico, devido aos seus prolongamentos laterais que se cruzam com os das células vizinhas.
O túbulo contornado proximal recebe o ultrafiltrado do espaço urinário da cápsula de Bowman. As suas células epiteliais cubóides têm na sua superfície microvilosidades que lhes conferem a especialização na absorção e transporte de fluídos.

Túbulos contornados distais

Quando a parte espessa da ansa de Henle entra na zona cortical, torna-se tortuosa, passando a designar-se túbulo contornado distal.(1)

Figura 7

A parede do túbulo distal é formada por epitélio cúbico simples.

As células epiteliais são mais pequenas, comparativamente às células dos túbulos contornados proximais, possuem menos mitocôndrias, não sendo tão acidófilas.

A parte apical destas células apresenta microvilosidades curtas, não formando uma orla em escova.

As células apresentam, na sua metade basal, pregas que se encaixam nas células vizinhas, tal com as células dos túbulos proximais.


Nesta publicação vai ser abordada a nefrotoxicidade induzida por uma substância química utilizada com anticongelante na indústria automóvel, o etilenoglicol.
O etilenoglicol é uma substância barata e facilmente disponível.(2) A sua ingestão pode ocorrer acidentalmente, por crianças, ou intencionalmente, como forma de suicídio. A intoxicação com etilenoglicol é uma emergência médica que, se não tratada prontamente, leva a depressão do sistema nervoso central, comprometimento cardiovascular e insuficiência renal.(3) Tratando-se de uma substância altamente tóxica, o diagnóstico e tratamento precoces são essenciais para diminuir a mortalidade e a morbilidade.(2)(3)
A elevada toxicidade do etilenoglicol está relacionada com a acidose metabólica resultante da biotransformação do etilenoglicol nos seus metabolitos tóxicos: o ácido glicólico causa uma acidose metabólica severa(3) e o oxalato precipita sob a forma de cristais de oxalato de cálcio nos rins e outros órgãos, sendo os cristais também eliminados na urina.

A deposição dos cristais de oxalato de cálcio no rim ocorre nas células epiteliais dos túbulos contornados proximais, levando à alteração das suas características histológicas típicas (Fig.4).
Para melhor compreensão das manifestações clínicas e alterações renais causadas pelo etilenoglicol, apresenta-se um caso clínico encontrado num dos artigos(2) da pesquisa realizada:

Caso ClínicoHistória clínica e exame físico


Homem de 18 anos, com história de asma, dirigiu-se ao serviço de urgência com queixas de náuseas, vómitos, dor abdominal difusa e mal-estar geral, sintomas que se manifestam há 2 dias.
Os seus sinais vitais foram avaliados: Pressão arterial – 150/100mmHg; Temperatura retal – 37,9ºC; Pulso – 84.
O indivíduo encontrava-se letárgico mas desperto e orientado em relação ao tempo, espaço e pessoas.

Exames laboratoriaisForam feitas análises toxicológicas à urina e sangue, que se revelaram negativas.
O paciente foi admitido por acidose metabólica e insuficiência renal.
Ao quinto dia de internamento hospitalar, a função renal deteriorou-se e a creatinina sérica atingiu os 11.9 mg/dL.

Exames imagiológicosEcografia revelou rins aumentados, com edema e ecogénicos, observação compatível com insuficiência renal aguda.


Biópsia renalRevelou necrose tubular renal aguda e deposição de cristais de oxalato de cálcio, (Fig.8) apoiando o diagnóstico de intoxicação por etilenoglicol.

Figura 8

Notar os cristais de Oxalato de Cálcio Mono-hidratado depositados nos túbulos contornados proximais e as células necrosadas.

Figura 9Notar as células edemaciadas com citoplasma aumentado e mais claro, com vacúolos.


O doente negou ter ingerido etilenoglicol.
Etilenoglicol não foi detectado em amostras de soro armazenadas desde a admissão.
O doente fez tratamento de hemodiálise durante 3 semanas, resultando na recuperação completa da função renal.
Vinte e quatro meses após esta admissão, o doente não demonstrou nenhuma evidência clínica ou laboratorial de disfunção renal [creatinina sérica, 97 mmol /L (1,1 mg / dL); uréia, 4,3 mmol /L (12 mg / dL)].

DiscussãoO etilenoglicol uma vez ingerido é metabolizado em ácido glicólico e oxalato. O primeiro é responsável pela acidose metabólica (primeiro sinal clínico da intoxicação).
O oxalato precipita sob a forma de cristais de oxalato de cálcio que são internalizados pelas células epiteliais dos túbulos contornados proximais, por um processo que envolve a adesão às membranas celulares das células epiteliais tubulares.(4) Os cristais de oxalato de cálcio induzem alterações da estrutura e função da membrana celular, levam ao aumento da permeabilidade mitocondrial (resulta na inibição da função respiratória da mitocôndria)(5) e causam um aumento das espécies reactivas de oxigénio por inibição da actividade da sucinato desidrogenase. Todas estas alterações induzem a morte celular por necrose.
Estudos recentes demonstram de modo definitivo que a acumulação de cristais de oxalato de cálcio monohidratado no tecido renal induzem necrose tubular renal que leva a insuficiência renal.(5) A extensão da lesão renal está directamente relacionada com o grau de acumulação de cristais de oxalato de cálcio nas células epiteliais dos túbulos proximais renais.(4)
O diagnóstico definitivo da insuficiência renal aguda secundária à intoxicação por etilenoglicol está dependente da visualização, após biópsia renal, da deposição de cristais de oxalato de cálcio dentro das células epiteliais tubulares e necrose generalizada do epitélio tubular nos túbulos contornados proximais.(7)


Anexo



Bibliografia
(1) Junqueira LC, Carneiro J, Histologia Básica, 9ª ed, Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1999
(2) Eder AF, Mcgrath CM, et all, Ethylene glycol poisoning: toxicokinetic and analytical factors affecting laboratory diagnosis, The American Association for Clinical Chemistry, 1998
(3) Egbert PA, Abraham K, Ethylene glycol intoxication: pathophysiology, diagnosis, and emergency management, PubMed, ANNA J, June 1999.
(4) Hovda KE, Guo C, Austin R, McMartin KE, Renal toxicity of ethylene glycol results from internalization of calcium oxalate crystals by proximal tubule cells, PubMed, Toxic Lett, February 2010.
(5) McMartin KE, Wallace KB, Calcium oxalate monohydrate, a metabolite ok ethylene glycol, is toxic for rat renal mitochondrial function, PubMed, Toxicol Sci, March 2005.
(6) McMartin K, Are calcium oxalate crystals involved in the mechanism of acute renal failure in ethylene glycol poisoning?, PubMed, Clin Toxicol (Phila), November 2009.
(7) Takahashi S, et all, Brain death with calcium oxalate deposition in the kidney: clue to diagnosis of ethylene glycol poisoning, PubMed, Leg Med (Tokyo), January 2008.
http://dicasderadiologia.com.br/site/2011/02/resumo-sobre-a-anatomia-do-sistema-urinrio/
http://acriticacatarinense.blogspot.com/2011/04/cientistas-criam-rim-humano-partir-de.html
https://sites.google.com/site/geologiaebiologia/geologia-e-biologia-10o/conteudos-de-biologia/regulao-nos-seres-vivos/regulao-nervosa-e-hormonal-nos-animais/osmorregulao/sistema-urinrio-do-homem
http://acd.ufrj.br/labhac/figura70.htm
http://anatpat.unicamp.br/lamuro1.html
http://www.ff.up.pt/toxicologia/monografias/ano1011/etilenoglicol/index_ficheiros/Page759.htm

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