quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Engenharia de tecidos: o futuro vem já aí...

Adelino Costa

Em junho de 2011, no Karolinska Institutet de Estocolmo, uma equipa multinacional de investigadores e clínicos implantou com sucesso o primeiro órgão artificialmente sintetizado a partir de células do próprio recetor do novo órgão.
A transplantação, a transfusão e o enxerto são procedimentos fundamentais na reparação, ou substituição, de tecidos e órgãos lesados que o corpo já não consegue reparar mesmo com ajudas terapêuticas. Porém são técnicas complexas e com diversas limitações, as mais importantes das quais são a dificuldade em encontrar dadores compatíveis, a elevada proporção de rejeição pelo recetor e a morbilidade que implica para o dador vivo. Uma nova abordagem, a engenharia de tecidos, propõe soluções para este problema: tecidos e órgãos à medida de quem precisa. Parece ficção, mas não é.
As técnicas cuja investigação e aplicação se conhece assentam em alguns elementos comuns como são o uso de estruturas de suporte para o crescimento do tecido, colonização dessas estruturas com células de elevado potencial de proliferação e diferenciação, modulação do crescimento e diferenciação com fatores adequados, cultura dos tecidos em biorreatores e implantação no recetor.
A estrutura de suporte é uma matriz que permite a adesão, proliferação e migração celular, oferecendo o necessário suporte para que o crescimento do tecido ocorra estruturadamente. A configuração mais frequente é a de uma malha microporosa de polímeros de consistência gelatinosa, esponjosa ou fibrosa, empregando substâncias naturais como proteínas (colagénio, fibrina, gelatina) e polissacáridos (alginato, agarose, ácido hialurónico, chitosan, goma gelana), que estão presentes na matriz extracelular naturalmente ocorrente nos tecidos, ou substâncias sintéticas como polietilenos, poliálcoois, polímeros peptídicos e mesmo substâncias inorgânicas como cerâmica (
1-6). Algumas abordagens fazem uso de substâncias compósitas em que diferentes substâncias das acima mencionadas são combinadas, aproveitando as suas vantagens e diminuindo as limitações, como por exemplo a combinação de cerâmica com polissacáridos, retendo as propriedades estruturais daquela com as biológicas destes. A figura 1 representa a aparência macroscópica e microscópica que estas estruturas adquirem.


Fig.1: Aspeto macroscópico de uma estrutura de suporte (esq.); aspetos microscópicos de
estruturas de suporte (dir.)

As principais características preconizadas para estas estruturas são a capacidade de permitirem a adesão, proliferação, migração e diferenciação celular e tecidular, a biocompatibilidade com o ambiente in vivo do recetor, a baixa imunogenicidade, propriedades mecânicas que permitam a flexibilidade preservando a estrutura, a biodegradabilidade, permitindo às células e matriz ocupar todo o tecido (2). A aplicação de proteínas e polissacáridos naturalmente presentes na matriz extracelular têm-se revelado particularmente adequadas para estes fins. Os polímeros peptídicos são alvos preferenciais da investigação neste campo uma vez que permitem uma variedade de conformações e de organização à escala nanométrica, incluindo a integração com outras moléculas orgânicas, e a modelação da estrutura concomitante com o crescimento do tecido propriamente dito, em ambientes controlados, tornando possível uma adequação mais precisa do tecido/órgão (7).O fabrico destas estruturas aplica duas abordagens principais: avançadas técnicas de microengenharia biomolecular e a descelularização de tecidos e órgãos naturais. Esta última permite preservar a matriz natural, removendo as células e outros elementos indesejados, como antigénios ou associados à rejeição, permitindo a posterior colonização com células apropriadas à formação e desenvolvimento do tecido ou órgão que se pretende criar (fig. 2)(8). Esta técnica já foi aplicada clinicamente com sucesso, porém contínua a requerer um dador (5).


Fig. 2: Descelularização do coração (rato): aspetos macroscópico, em diferentes etapas, e histológico final

As estruturas de suporte são colonizadas com células que são os artífices principais do crescimento e desenvolvimento do novo tecido. Elas aderem, proliferam, migram e, possuindo potencial, diferenciam-se dando origem às células do novo tecido, produzindo ainda a matriz extracelular que o vai complementar, até que um novo tecido surge e a própria estrutura de suporte inicial é degradada e substituída. As células estaminais, pelo seu elevado potencial de diferenciação, são preconizadas como as mais adequadas para este fim. São colhidas de duas origens principais: embrionária (embriões, cordão umbilical e líquido amniótico) e células estaminais mesenquimatosas (MSC) (fig. 3). Embora as primeiras possuam maior potencial de diferenciação, estão disponíveis em pequenas quantidades e o seu uso levanta problemas éticos. Já as segundas existem no corpo de todas as pessoas, são facilmente acessíveis e possuem uma série de características que parecem fazer delas a solução ideal: parecem possuir pluripotencialidade (potencial em se diferenciarem em qualquer célula originária dos três tecidos embrionários: ectoderme, mesoderme e endoderme), não possuem imunogenicidade já que são do próprio recetor (autólogas), baixa propensão oncogénica e podem ser cultivadas em meios in vitro. São facilmente acessíveis em vários tecidos, particularmente entre as células progenitoras da medula óssea e no tecido adiposo. Uma terceira fonte de células para engenharia de tecidos são as células estaminais induzidas, células somáticas que são desdiferenciadas, i.e. revertidas à condição de células pluri ou multipotenciais, via engenharia genética, porem a sua aplicabilidade ainda não foi testada clinicamente ao contrário das anteriores.
Como muitos destes procedimentos são desenvolvidos ex vivo são necessários equipamentos destinados a garantir o ambiente adequado para que tal suceda, estes equipamentos são denominados biorreatores. No fundamental procuram replicar as condições in vivo sobretudo ao nível de oxigenação, nutrição, fatores de crescimento e desenvolvimento tecidular e condições físicas (ex. temperatura). A fig. 4 apresenta uma imagem de um biorreator, usado para a síntese da traqueia e brônquios referidos num caso clínico adiante.



Fig. 3: Pluripotencialidade das MSC (esq.; MSC (dir.).

A fim de promover e modular o desenvolvimento do novo tecidos são usados fatores bioquímicos, presentes nos processos naturais de crescimento e desenvolvimento tecidular, doseados nas estruturas de suporte e biorreatores. Entre os fatores usados incluem-se fatores de crescimento, os mais comuns, integrinas, mitogénios, etc. (5, 6). Alguns investigadores preconizam também o uso de farmacoterapia com o propósito de modular a resposta inflamatória que o recetor tende a desenvolver sobre o implante (5).



Fig. 4: Biorreator (9)


Histologicamente os tecidos produzidos por engenharia revelam uma parecença notável com os seus correspondentes naturais, como a seguir se apresenta.A figura 5 apresenta cortes histológicos tecido osteocondral de uma falange artificial desenvolvida em contexto laboratorial (10). Em a (corado com safranina O) é possível distinguir uma zona de crescimento de tecido cartilagíneo (C) e uma zona de crescimento ósseo (S). Em b apresentam-se sucessivas zonas de crescimento cartilagíneo: tangencial, transitório e radial. Em c e d apresenta-se tecido ósseo podendo ser distinguido osso trabecular (T), bem como reminiscências da estrutura de suporte (P).

Fig. 5: Tecido osteocondral de falanges artificiais

A fig. 6 apresenta regiões articulares interfalângicas: em a e b duas imagens, com diferente magnitude, de uma articulação interfalângica em que JC é o espaço sinovial e a seta aponta para a cápsula sinovial, sendo C tecido cartilagíneo adjacente; c e d referem-se a outra articulação podendo diferenciar-se em c diferentes zonas crescimento condral (tangencial (TA) e transitório (TR)) e em condrócitos hipertrofiados (HC), junto a resíduos poliméricos da estrutura de suporte (10).

Fig. 6: Tecido cartilagíneo articular
A figura 7 apresenta imagens histológicas de tecido epitelial de revestimento (pele), coradas com tricrómio de Masson, com duas técnicas diferentes de engenharia. É possível visualizar a clara e precisa diferenciação do tecido sintetizado, que apresenta inclusive produção de queratina (C). As setas indicam resquícios da estrutura de suporte ainda não substituídos pelo novo tecido.


Fig. 7: Pele artificial

Já a figura 8 apresenta duas imagens, com colorações diferentes (HE e tricrómio de Masson) de tecido ósseo sintético em que é possível ver o tecido em crescimento em redor de porosidades constituídas de vasos e resíduos da estrutura de suporte(11).




Fig. 8: Tecido ósseo

Os tecidos cartilagíneo, ósseo e epitelial de revestimento têm-se revelado os mais propícios à engenharia, sendo a sua investigação e aplicação clínica a mais avançada. A engenharia de tecidos tem produzido tecidos e órgãos para uso terapêutico, como traqueia, bexiga, pele, cartilagem, vasos sanguíneos e válvulas cardíacas, córnea e trato urinário (3, 5). Estes produtos têm sido sobretudo usados para reparação parcial de tecidos lesados (cartilagem e pele), sendo a implantação de órgãos completos muito recente.

Fig. 9: Osso (esq.) e tecido epitelial (dir.) artificiais

A implantação do novo tecido/órgão no recetor é a ultima etapa deste processo, levantando importantes desafios. Os investigadores e os clínicos que já precederam a intervenções terapêuticas recorrendo a estas soluções procuram perceber qual o melhor momento para implantação e como assegurar a interligação ao ambiente que rodeia o tecido/órgão implantado, nomeadamente aos níveis vascular e nervoso, ao mesmo tempo inibindo eventuais reações adversas, nomeadamente inflamatórias, imunitárias ou oncogénicas. O caso com que se abre este artigo, e adiante descrito, oferece uma perspetiva reveladora sobre estas questões.
O recetor do novo órgão, uma traqueia e brônquios principais, sofria de uma neoplasia (carcinoma mucoepidermoide) da traqueia que havia invadido os brônquios superiores, sem haver metastizado, e era refratário às terapêuticas convencionais. Sem outra solução que a transplantação a equipa liderada pelo Dr. Paolo Macchiarini, já com experiência em transplantações de órgãos artificiais, optou pela abordagem inovadora de implantar um órgão sintetizado com células do próprio utente, e não de um dador como sucedera até então noutros casos. Usando MSC e células progenitoras colhidas de medula óssea para a matriz do novo órgão, induzidas a diferenciarem-se em condrócitos, e células epiteliais nasais para o epitélio interior, as células foram implantadas numa estrutura de suporte microporosa sintética, que foi depois colocada num birreator. Defendendo que uma manipulação ex vivo excessiva pode conduzir à deterioração do novo tecido e ao ganho de propriedades imunogénicas, o Dr. Macchiarini e colegas implantaram o novo órgão 36h depois (fig. 11).


Fig. 10: Traqueia artificial (estrutura de suporte)

A figura 12 apresenta imagens histológicas do seguimento pós-operatório aos 2 meses: iv apresenta tecido de granulação associado a inflamação; v e vi epitélio respiratório com células secretoras de muco; vii metaplasia de epitélio escamoso (vermelho) (9). Aos 4 meses os clínicos reportam que o utente se apresenta sem problemas associados à implantação (5).





Fig. 11: Imagens histológicas pós-operatórias a implantação de traqueia e brônquios artificiais

Sucessos como este não podem, porém, iludir quanto aos muitos desafios que ainda falta responder. No imediato encontram-se o controlo de reações inflamatórias e imunitárias, o risco de carcinogénese dos novos tecidos (relacionado com a pluripotencialidade das células usadas), a vascularização e inervação, e a engenharia de órgãos, complexos com coração ou fígado. A vascularização parece ser o principal desafio pois há limitações na capacidade em construir tecidos, e mais ainda órgãos, adequadamente vascularizados (as células não sobrevivem a mais que algumas centenas de micrómetros dos capilares) e conectáveis à vasculatura do recetor, estudando-se presentemente a combinação de microvasculaturas sintetizadas previamente à colonização celular com a implantação e proliferação de endotelócitos associada a essas miscroestruturas vasculares (3)
Algumas descobertas já em estudos avançados, como o uso de MSC como células progenitoras dos novos tecidos, e polímeros peptídicos para a construção de matrizes de suporte e vasculatura, como acima descritos, oferecem perspetivas animadoras, e num futuro não muito distante poderá ser possível a implantação de órgãos feitos à medida do recetor e as dificuldades de fornecimento de bancos de sangue ser erradicadas.

Agradecimento a J. T. Oliveira pela cortês disponibilização da publicação de que é co-autor citada na bibliografia.

Bibliografia
1. Oliveira JT, Reis RL. Polysaccharide-based materials for cartilage tissue engineering applications. Journal of tissue engineering and regenerative medicine. 2011;5(6):421-36. Epub 2010/08/27.
2. Sachlos EC, J. T. . European Cells and Materials. 2003;5:29-40.
3. Gauvin R, Guillemette M, Dokmeci M, Khademhosseini A. Application of microtechnologies for the vascularization of engineered tissues. Vascular cell. 2011;3:24. Epub 2011/11/02.
4. Sakiyama E. Combining stem cells and biomaterial scaffolds for constructing tissues and cell delivery. StemBook. 2008.
5. Jungebluth P, Moll G, Baiguera S, Macchiarini P. Tissue-engineered airway: a regenerative solution. Clinical pharmacology and therapeutics. 2012;91(1):81-93. Epub 2011/12/02.
6. Gardin C, Vindigni V, Bressan E, Ferroni L, Nalesso E, Puppa AD, et al. Hyaluronan and fibrin biomaterial as scaffolds for neuronal differentiation of adult stem cells derived from adipose tissue and skin. International journal of molecular sciences. 2011;12(10):6749-64. Epub 2011/11/11.
7. Webber MJ, Kessler JA, Stupp SI. Emerging peptide nanomedicine to regenerate tissues and organs. Journal of internal medicine. 2010;267(1):71-88. Epub 2010/01/12.
8. Ott HC, Matthiesen TS, Goh SK, Black LD, Kren SM, Netoff TI, et al. Perfusion-decellularized matrix: using nature's platform to engineer a bioartificial heart. Nature medicine. 2008;14(2):213-21. Epub 2008/01/15.
9. Jungebluth P, Alici E, Baiguera S, Le Blanc K, Blomberg P, Bozoky B, et al. Tracheobronchial transplantation with a stem-cell-seeded bioartificial nanocomposite: a proof-of-concept study. Lancet. 2011;378(9808):1997-2004. Epub 2011/11/29.
10. Isogai N, Landis W, Kim TH, Gerstenfeld LC, Upton J, Vacanti JP. Formation of phalanges and small joints by tissue-engineering. The Journal of bone and joint surgery American volume. 1999;81(3):306-16. Epub 1999/04/13.
11. Zhao L, Zhao JL, Wan L, Wang SK. The study of the feasibility of segmental bone defect repair with tissue- engineered bone membrane: a qualitative observation. Strategies in trauma and limb reconstruction. 2008;3(2):57-64. Epub 2008/04/23.


Figuras (de outras fontes)
Figura 1: http://www.cellsupports.com/index.html e http://www.ecr6.ohio-state.edu/mse/faculty/powell/
Figura 3: http://www.nature.com/nri/journal/v8/n9/fig_tab/nri2395_F1.html e http://en.wikipedia.org/wiki/Mesenchymal_stem_cell
Figura 7: http://www.ecr6.ohio-state.edu/mse/faculty/powell/
Figura 9: http://www.childrenshospital.org/gallery/index.cfm?G=45&page=14 e http://science.nationalgeographic.com/science/enlarge/skin-tissue-culture.html

Figura 10: http://yourlife.usatoday.com/health/story/2011/07/Patient-gets-worlds-first-artificial-trachea/49176868/1

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