quarta-feira, 30 de maio de 2012

Células da pele transformadas em células do coração

Margarida Gil


“Cientistas afirmam que descobriram uma forma de transformar células de pele de pacientes com insuficiência cardíaca em células saudáveis de tecido muscular do coração.
A experiência consiste em utilizar células do próprio indivíduo, o que evita problemas de rejeição de tecidos, como explica o artigo publicado no "European Heart Journal".” Assim começava a notícia que, no dia 24 de Maio de 2012 foi apresentada no Jornal de Notícias

O estudo denominado “Derivation and cardiomyocyte differentiation of induced pluripotent stem cells from heart failure patients” (Fig. 1), demonstra que a criação de células estaminais pluripotentes induzidas, em doentes com insuficiência cardíaca grave, podem ser diferenciadas em cardiomiócitos viáveis e funcionais, que integram o tecido cardíaco hospedeiro. 

Fig. 1 – Artigo em análise

As células estaminais podem ser de três tipos: embrionárias, pluripotentes induzidas ou adultas, sendo que as suas características estão descritas na Tabela 1.

As células estaminais definem-se por duas propriedades básicas: a capacidade de se auto-renovarem indefinidamente num estado indiferenciado e a possibilidade de se diferenciarem num ou mais tipos de células especializadas (fig. 2)
 Fig.2 – Propriedades das células estaminais

O trabalho com células estaminais embrionárias (células ES, Embryonic Stem cells) de ratinho abriram o caminho à investigação das células ES humanas que, dada a sua capacidade de autorrenovação e diferenciação, têm um elevado potencial para uso em terapia celular.
Para além das células estaminais embrionárias, há ainda as células estaminais ‘’adultas’’, que servem para manter as funções dos tecidos e órgãos onde estão presentes, bem como reparar lesões nos tecidos em caso de trauma. (Fig. 3)

Fig. 3 - Fontes de células estaminais embrionárias e adultas

Recentemente foi descrita a criação de células estaminais pluripotentes induzidas (iPSC, induced pluripotent stem cells) a partir de células somáticas humanas ou de ratinho através da expressão forçada de fatores de transcrição definidos como essenciais para a manutenção do estado de pluripotência das células ES. A reprogramação de  iPSC permite a obtenção de células com as propriedades únicas das células ES, a partir de células diferenciadas adultas do próprio paciente.
A diferenciação das células estaminais humanas em cardiomiócitos surge como uma possível solução para a regeneração do tecido cardíaco, bem como a sua capacidade para melhorar a função cardíaca em modelos animais.
Os cardiomiócitos são as fibras musculares cardíacas (Fig 4), normalmente uninucleadas, ramificadas, com muitas mitocôndrias e sarcoplasma rico em colagénio.

Apresentam discos intercalares, que fornecem pontos de fixação para as miofibrilas. Permitem a disseminação extremamente rápida dos estímulos contrácteis de uma célula para outra (fornecem áreas de baixa resistência elétrica para a rápida propagação da excitação por todo o miocárdio) ® desse modo, as fibras adjacentes contraem-se quase que simultaneamente, agindo portanto como um sincício funcional.
Fig. 4Tecido muscular estriado cardíaco

No artigo em análise, é referido que a medicina regenerativa/reparativa tem evoluído no sentido de possibilitar a recuperação tecidual após lesão, pretendendo-se neste caso reconstruir o tecido lesado, com novas células contrácteis, prevenindo assim a falência cardíaca.
O estudo pretende derivar iPSC a partir de céulas da derme de doentes com insuficiência cardíaca grave, em cardiomiócitos viáveis e funcionais. Foram retirados fibroblastos da derme de dois doentes, ambos com cardiomiopatia isquémica (sexo masculino, 51 e 61 anos), reprogramados para criar HF-hiPSC’s (heart failure – heart induced pluripotent stem cells) através de infeção retroviral de três factores de reprogramação: Oct4, Sox2, Klf4. As hiPSC’s de controlo foram reprogramadas com células da derme de um individuo saudável.

Após a reprogramação celular, foram realizados testes de imunomarcação para verificar a formação de teratomas (através da injecção de hiPSC’s indiferenciados no tecido subcutâneo de ratinhos imunocomprometidos), sequenciação genética e análises de cariótipo. (fig. 5) A eficiência da reprogramação foi avaliada por imunomarcação após 21 dias de cultivo e foi entre 0,014% e 0,02%. Nos estudos de expressão genética, foram cultivadas in vitro células contrácteis já diferenciadas e adicionadas a uma cultura de cardiomiócitos ventriculares de ratinhos neonatos. Para verificar a capacidade contráctil das células foram realizados estudos de electrofisiologia, bem como estimulação neuro humoral (com β-agonista para aumentar a frequência cardíaca e agonista muscarínico para diminuir a frequência cardíaca) (fig.6). Por fim, no transplante celular, as hiPSC’s foram injectadas no miocárdio do ventrículo esquerdo de ratinhos (medicados com ciclosporina 15mg/kg/dia para prevenir a rejeição do transplante). Os corações foram retirados após 7-10 dias e crioseccionados para exame histológico. 

Fig. 5 – Derivação e caracterização das HF-hiPSC’s. A- imunomarcação das hi-PSC’s de controlo e reprogramadas com marcadores pluripotentes. B- PCR mostra a reactivação dos factores de reprogramação, em comparação com os fibroblastos iniciais. C- Sequênciação do promotor NANOG das hiPSC’s em comparação com os fibroblastos de origem. D- Coloração H&E dos teratomas formados após injecção de HF-hiPSC’s em ratinhos.

Fig. 6 – Estudos electrofisiológicos. A, B – registo extracelular de actividade electrica das HF-hiPSC’s cultivadas. C – O mapa de activação. D – Comparação entre frequência de batimentos entre as células de controlo e as HF-hiPSC’s já diferenciadas em cardiomiócitos.


Concluiu-se que:

  1. Os hiPSC’s podem ser originados a partir de fibroblastos da derme em doentes com IC avançada, utilizando uma reprogramação com três factores: Oct4, Sox2, Klf4;
  2. Os HF-hiPSC’s podem ser diferenciados em cardiomiócitos com propriedades moleculares, estruturais e funcionais;
  3. A eficiência e capacidade de diferenciação dos hiPSC’s, bem como as propriedades fenotípicas são comparáveis quando utilizados fibroblastos de doentes com IC ou de indivíduos saudáveis;
  4. Os HF-hiPSC’s conseguem integrar o tecido cardíaco pré-existente;
  5. Os HF-hiPSC’s podem enxertar, sobreviver e integrar estruturalmente com o tecido cardíaco hospedeiro, num transplante in vivo. (Fig 5)
Fig. 7– Transplante in vivo de HF-hiPSC’s. Anticorpos anti-mitocôndria humana, utilizados para imunomarcação para verificar a origem humana nos miocárdio de ratinhos (verde, A); fenótipo de cardiomiócitos humano confirmado por imunomarcação para α-actinina sarcomérica (verde, B); estrias musculares cardíacas a serem formadas (B); desenvolvimento de gap junctions entre as HF-hiPSC’s do dador e do ratinho (C). 

Comprovou-se assim que as células estaminais pluripotentes induzidas podem ser formadas a partir de células de doentes com insuficiência cardíaca avançada e diferenciadas em cardiomiócitos viáveis e saudáveis. 


Bibliografia



.       BRAGANÇA,J., TAVARES, A., BELO, J., Células estaminais e medicina regenerativa- um admirável mundo novo, Departamento de Ciências Biomédicas e Medicina, UALG, Faro.

.      ROSS, M., PAULINA, W., Histology – a text and atlas, 6th Edition, Lippincott Williams & Wilkins, a Wolters Kluwer business, 2011, Philadelphia, ISBN 978-0-7817-7200-6;


.     ZWI-DANTSIS, L., HUBER,I., et al, Derivation and cardiomyocyte differentiation of induced pluripotent stem cells from heart failure patients, European Heart Journal, May 22, 2012.


.       MAURITZ, C., SCHWANKE, K., et al, Generation of Functional Murine Cardiac Myocytes From Induced Pluripotent Stem Cells, American Heart Association, July 14, 2008.


.      PITTENGER, M., MARTIN, B., Mesenchymal Stem Cells and Their Potential as Cardiac Therapeutics, American Heart Association, 2004

terça-feira, 15 de maio de 2012

Regeneração cardíaca após enfarte miocárdio

Nuno Fernandes


No dia 14 de Fevereiro de 2012 foi publicado um estudo na revista The Lancet que demonstra que a administração intracoronária de cardiosphere-derived cells (CDCs) autólogas, em doentes que sofreram enfarte agudo do miocárdio (EAM), é segura e aumenta a viabilidade do miocárdio através da redução da cicatriz e simultaneamente através do estímulo de crescimento de tecido cardíaco saudável.
Este artigo tem por base um estudo prospectivo randomizado de fase 1, efectuado nos Estados Unidos (Cedars-Sinai Heart Institute e The Johns Hopkins Hospital), que tinha como objectivos avaliar a segurança da utilização de CDC’s como terapia em pacientes com EAM e avaliar a sua eficácia preliminar aos 6 meses em RMN.
Os critérios de inclusão no estudo foram EAM recente com disfunção ventricular esquerda (Fracção de ejecção 25%-45%), idade superior a 18 anos e intervenção coronária percutânea com colocação de stent com sucesso com TIMI (Thrombolysis in Myocardial Infartation) flow de 2 ou mais na artéria relacionada com o enfarte.
Os critérios de exclusão foram uma esperança de vida inferior a 3 anos, contra-indicações para fazer RMN, enfarte envolvendo o ventrículo direito (local onde são feitas as biopsias para recolha de tecido), tumor cardíaco, história de arritmias ventriculares mantidas, insuficiência cardíaca classe IV, ou tumores identificados em TAC.

Trial profile and study timeline
(A) CADUCEUS trial profile. (B) Study events and timeline. Major efficacy data are based on comparisons of the baseline MRIs and the 6-month and 12-month MRIs. Study procedures below the timeline apply only to those participants who were randomly allocated to receive CDCs, but all participants underwent the MRI studies shown above the timeline. CDC=cardiosphere-derived cell. *Two patients in the low dose group and four in the high dose group. †Delay due to investigation of contamination.


A todos os pacientes identificados como tendo sofrido EAM há menos de 30 dias foi efectuada uma Ressonância Magnética Nuclear (RMN). Os pacientes elegidos para o estudo foram colocados de forma randomizada, com um rácio de 2:1, no grupo com tratamento com CDCs ou no grupo de controlo.

Nos pacientes do grupo para tratamento com CDCs foi feita biopsia endomiocardica para recolha de tecido, tendo sido este colocado em meio de cultura para obter cardiosferas e posteriormente CDCs.





Manufacture and characteristics of CDCs
(A) Process flow for manufacture of CDCs.


Depois de efectuado um estudo baseline com RMN, os CDCs foram administrados através de um catéter de angioplastia no local de bloqueio prévio da artéria relacionada com o EAM.
Foi efectuado um estudo baseline com RMN ao grupo de controlo no mesmo espaço temporal após o EAM que o grupo tratado com CDCs.
Todos os pacientes foram seguidos às 2 semanas, 1, 2, 3, 6 e 12 meses após a administração de CDCs ou tempo correspondente no grupo de controlo.
Todas as amostras de CDCs foram sujeitas a um teste de integridade citogénica através da verificação da existência do número de cromossomas adequado.
Foram efectuadas RMN no início (baseline), aos 6 e 12 meses, para avaliar a massa de tecido de cicatrização, massa de miocárdio viável no ventrículo esquerdo, tamanho da cicatriz, volumes cardíacos, função global e função regional de todos os pacientes.
Para verificar a regeneração tecidular independente dos estudos de RMN, foram feitos estudos suplementares em ratos com tamanho de cicatriz, massa da cicatriz, massa viável a partir de uma serie de secções de corações preparadas com tricromo de Masson. Os ratos foram submetidos a isquémia miocárdica anterior durante 45 minutos e 20 minutos de reperfusão seguida de infusão intracoronária de CDCs. Os corações foram analisados 3 semanas após a infusão.

Resultados: Nenhum paciente morreu ou sofreu evento cardíaco adverso major. Não foram registadas complicações no período das 24 horas após administração de CDCs.
Nos primeiros 6 meses, 5 pacientes sofreram eventos adversos (4 do grupo de CDCs e 1 do grupo de controlo), e 2 pacientes do grupo de CDCs sofreram eventos adversos no período dos 12 meses. Destes casos, todos excepto um foram considerados como não relacionados ou dificilmente relacionados com o tratamento em estudo. A excepção foi o caso de um paciente que sofreu um EAM sem onda Q que tinha recebido 25 milhões de CDCs 7 meses antes, tendo este evento sido considerado como provavelmente relacionado com o tratamento.
Após 6 meses da administração de CDCs os autores constataram uma redução na circunferência e espessura da cicatriz e um aumento de miocárdio viável, alterações que não observaram no grupo de controlo.
Aos 12 meses o tamanho da cicatriz no grupo de controlo manteve-se inalterada mas no grupo tratado com CDCs tinha sofrido uma redução. Aos 12 meses os pacientes tratados com CDCs tinham tido uma redução de 12,3% no tamanho da cicatriz. A massa da cicatriz diminui em média 28% no grupo tratado com CDCs aos 6 meses e 42% aos 12 meses, mas manteve-se inalterada no grupo de controlo.

Representative MRI and changes in scar size
Short-axis MRI of heart at baseline (82 days after myocardial infarction; A) and 6 months after CDC infusion (B) in a participant randomly allocated to receive CDCs. Short-axis MRI of heart at baseline (77 days after myocardial infarction; C) and after 6 months (D) in a control. Infarct scar tissue (green arrows) is evident by areas of hyperintensity (white) whereas viable myocardium appears dark. Difference in scar size from baseline to 6 months (E) or 12 months (F). CDC=cardiosphere-derived cell.


O estudo dos tecidos de coração dos ratos permitiram visualizar uma redução  do tamanho da cicatriz, redução da massa de cicatriz e aumento da massa viável. Não foi identificado hipertrofia na zona limite do enfarte. Os resultados observados são consistentes com restauração de miocárdio viável com novos cardiomiocitos. Estes resultados suportam a noção de que este as imagens de RMN mostram regressão da cicatriz e regeneração tecidular como resultado do tratamento com CDCs.


Myocardial regeneration in rats treated with CDCs
Representative images of Masson trichrome-stained sections of vehicle control (A) and intracoronary CDC-treated (B) rat hearts 3 weeks after treatment (scar tissue stained blue and viable myocardium stained red). Enlarged regions show striking differences in transmurality of scar and extent of viable myocardium in the infarcted region. (C) Quantification of scar size, scar mass, and viable mass in CDC-treated and control hearts. 


O estudo conclui que a terapêutica com CDCs é segura, podendo passar para a fase 2 de estudo. Concluem também que os resultados demonstram aumento da viabilidade do miocárdio, consistente com terapêutica de regeneração, merecendo a avaliação em estudos futuros.


Makkar, R. R., R. R. Smith, et al. (2012). "Intracoronary cardiosphere-derived cells for heart regeneration after myocardial infarction (CADUCEUS): a prospective, randomised phase 1 trial." Lancet.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22336189