domingo, 22 de julho de 2012

Os milagres continuam…

Maria Cláudia Cunha

O conceito de que a mulher nasce com todos os óvulos de que poderá dispor durante a fase fértil da sua vida está profundamente enraizado e foi um dogma inquestionável durante décadas.
A mulher deixa de produzir ovócitos após o nascimento. Na recém-nascida, cada ovário possui um milhão de folículos primordiais. Todos os meses, em cada ovário, cerca de 20-30 folículos iniciam o seu crescimento mas, devido à ausência de níveis adequados de hormonas, esses folículos degeneram (atrésia). Em consequência, por altura da puberdade, cada ovário já só possui 100.000 ovócitos. Na adolescência, a cada mês, um dos ovários consegue fazer crescer um folículo até aos 2-3 cm, a que se segue a sua ovulação (os ovários alternam a cada mês). Em simultâneo com este ciclo ovárico, a rapariga inicia os ciclos menstruais. A partir dos 28 anos, observa-se uma perda progressiva da capacidade de resposta dos folículos primordiais aos níveis hormonais. Deste modo, o ovário tende a deixar de formar folículos maduros, dando origem, com uma frequência cada vez maior, a folículos contendo ovócitos imaturos ou a folículos com ovócitos anormais (em morfologia e em estrutura genética), podendo mesmo não ovular, até que se atinge a menopausa por volta dos 50 anos.
Pelo contrário, o homem nasce com células mãe nos testículos e só inicia a produção dos espermatozóides a partir da puberdade. Esta produção mantém-se toda a vida, apesar da concentração, morfologia normal e mobilidade dos espermatozoides tender a diminuir com a idade, geralmente já fora do período reprodutivo.
Desde 2004 que têm sido publicados vários artigos científicos que demonstram a existência de células mãe nos ovários de ratinhos. Essas células podem ser mantidas em laboratório e, quando transferidas para ovários, evoluem para ovócitos morfologicamente normais que após sofrem um processo de maturação regular dão origem a óvulos.
Apesar do cepticismo com que esta ideia foi recebida, a hipótese de células equivalentes existirem também no tecido ovárico da mulher adulta abriria um mundo de possibilidades não só para o prolongamento da sua vida fértil mas também para o tratamento da infertilidade.


Em Março de 2012 foi publicado na revista Nature a prova de existência dessas células.


Enfrentamos agora uma nova onda de questões sobre as quais importa refletir cautelosamente: 

  • Como se irá provar de forma eticamente aceitável que estas células poderão dar origem a embriões viáveis? 
  • Será viável a existência de um banco destas células para suporte dos tratamentos de infertilidade? 
  • Quais serão as consequências do aumento ilimitado da idade fértil da mulher? 


Metodologia
Para testar os resultados em humanos foi adquirido tecido ovárico criopreservado, proveniente de mulheres que procuram cirurgia de alteração de género.
Na camada mais externa do ovário estão situadas as stem cells que a equipa suspeita serem capazes de originar óvulos viáveis. Para isolar e purificar as stem cells do restante tecido ovárico que as rodeia foi usada uma técnica que se baseia no facto de exibirem na sua superfície uma fracção de uma proteína que só se expressa nestas células, a proteína DDX4.
Ao contrário do que acontece nos óvulos maduros onde ela é intracelular, a existência da DDX4 à superfície permite a adição de anticorpos anti DDX4, o que possibilita o seu isolamento. Após ter sido adicionado um marcador fluorescente para que as células sejam facilmente detectadas, elas foram injectadas em tecido ovárico humano que foi posteriormente transplantado para um ratinho vivo. E foi aí que as células fluorescentes deram origem a óvulos humanos novos.
A maturação das stem cells quando são colocadas em contacto com tecido ovárico ficou gravado em filme.


Outra das grandes descobertas deste trabalho é que estas células podem ser mantidas fora do corpo humano podendo dar origem a uma pool de células capazes de gerar um grande número de óvulos. Se este processo for guiado correctamente abre a possibilidade de se poder dispôr de uma fonte ilimitada de óvulos humanos.

Conclusões
As implicações e as potencialidades desta descoberta na saúde reprodutora da mulher são avassaladoras. Todo os procedimentos médicos actuais giram à volta do pressuposto de que o número de óvulos de uma mulher é finito.
No futuro, uma mulher poderá fazer uma biópsia para ser retirada uma amostra de tecido ovárico de onde se poderão isolar estas células e a partir de 1 centena obter 1 milhão…
Se se conseguir chegar ao ponto de gerar óvulos funcionais fora do corpo humano, isto levará a uma alteração profunda de toda a reprodução medicamente assistida.


Bibliografia


Johnson J. et al. Germ line stem cells and follicular renewal in the postnatal mammalian ovary. Nature. March, 2004. Vol 428: 145-50 

Zou K. et al. Production of offspring from a germline stem cell line derived from neonatal ovaries . Nat. Cell Biol. May, 2009; 11(5):631-6. 

Powel, K. et al. Egg making stem cells found in adult ovaries. Nature. March, 2012. Vol 483:16 

sábado, 21 de julho de 2012

Regeneração da espinal medula - o realizar de um sonho?

Ana Sofia Costa

A lesão da espinal medula (SCI) pode ser definida como uma lesão traumática, que resulta num défice funcional, conduzindo a uma paralisia severa e permanente. Funções e estruturas associadas são perdidas através de um processo secundário complexo (Hernándeza et al, 2011). Este é um problema de saúde de grande incidência na população mundial, cujas consequências biopsicossociais podem ser devastadoras. Desta forma, ao longo de muitos anos, tem-se assistido a um grande esforço da comunidade científica em descobrir um processo terapêutico capaz de melhorar a qualidade de vida das pessoas afectadas pela SCI.

A revista Science, na sua publicação do dia 1 de Junho de 2012, apresentou ao mundo um artigo de investigação realizado pela equipa de Grégoire Courtine, com o título Restoring voluntary controlo of locomotion after paralyzing spinal cord injury, que tem gerado uma enorme curiosidade e interesse por parte dos média e restante comunidade científica e cultural. O resultado do trabalho de cinco anos dos investigadores da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, foi recompensado com uma bolsa de 9M de euros com o objectivo de dentro de um ou dois anos, realizarem ensaios em humanos no Hospital Universitário de Balgrist, em Zurique.

Focando o desenvolvimento do estudo, esta equipa partiu de 2 pressupostos cientificamente comprovados: 1- treino promove mudanças neuroplásticas no SNC capazes de restaurar a locomoção na lesão severa, incompleta, da espinal medula (EM); 2 - em combinação com a estimulação eléctrica epidural dos segmentos lombossagrados, a reabilitação, baseada na actividade, pode restaurar movimentos depois da paraplegia motora completa. Atendendo a estes conceitos, eles ambicionaram restabelecer o comando supraespinhal da locomoção, através da remodelação dos circuitos neurais poupados. Desta forma, pensaram em desenvolver estratégias de controlo automático, por forma a melhorar os resultados da reabilitação.
Começaram por provocar uma SCI a 27 ratinhos. Procederam a uma hemissecção lateral esquerda a nível de T7 e a uma hemissecção lateral direita a nível de T10, deixando um espaço de tecido intacto (T8/T9). Os ratinhos sofreram uma perda completa das funções dos membros inferiores.
De seguida, aplicaram um estímulo electroquímico nos segmentos L2 e S1, com um cocktail de agonistas dos receptores dopamina e serotonina e estimulação eléctrica epidural, por forma a activar as vias sensitivas, essenciais ao controlo da locomoção.


Dividiram os 27 ratinhos em 3 grupos de controlo: 10 não foram treinados; 7 foram treinados no tapete rolante; 10 foram treinados no solo, com apoio de sistema robótico. Este sistema consiste numa prótese que posiciona os ratinhos bipedalmente, providenciando apoio vertical e lateral, mas que não facilitava a locomoção em nenhuma direcção. Foi necessário activar a participação através de uma recompensa (chocolate), por forma a motivar os ratinhos a iniciar locomoção.


Os ratinhos treinados no tapete rolante durante 9 semanas não iniciaram movimentos voluntários no solo. Apresentavam movimentos involuntários e até alguns paços voluntários, mas sem coordenação locomotora. Os ratinhos treinados no solo apresentaram os primeiros paços voluntários 2 a 3 semanas após início de treino e 6 semanas após foram capazes de iniciar e manter locomoção por longos períodos de tempo. 2 a 3 semanas adicionais de treino conseguiam subir escadas e contornar obstáculos.


Analisando os resultados, verificaram que ocorreu uma remodelação extensiva nas projecções intra e supraespinhais, com aumento significativo do número de núcleos neuronais no corno ventral e intermédio da substância cinzenta da EM. Inclusive, as vias descendentes corticoespinhais contornaram as lesões da EM, inervando também a substância cinzenta do lado esquerdo a nível de T8/T9. Também no tronco cerebral foi observado um aumento na densidade de projecções corticais, a nível dos núcleos vestibulares, substância reticular e pirâmides. 


 Os neurónios torácicos assumem papel crucial na restauração da locomoção voluntária, comprovado pela ablação do movimento quando a EM, a nível de T8/T9, foi injectada com receptores NMDA. O córtex motor também influencia controlo da locomoção, tendo sido aplicados vários testes para o comprovar, entre eles a administração de GABA no córtex motor esquerdo, com inibição dos movimentos voluntários. Nas duas situações os movimentos eram recuperados quando o sistema robótico estimulava o início da locomoção, demonstrando que as vias descendentes não eram afectadas, apenas o comando do estímulo.
Concluiu-se que o treino no solo (sistema robótico+estimulação electroquímica) promove plasticidade a nível dos sistemas axonais derivados do córtex e tronco cerebral e que potencia os circuitos intraespinhais a nível da sua capacidade de contornar lesões e expandir potenciais terapêuticos a outros circuitos. Os treinos passivos (tapete rolante) promovem a plasticidade sublesão, mas não estimulam a remodelação das vias descendentes. Os ratinhos não iniciam movimentos voluntários.
Embora demonstrados resultados únicos e promissores, algumas questões se levantam quanto ao sucesso do futuro programa: é necessária administração de cocktail de neurotransmissores e estimulação eléctrica (risco/benefício); os ratos só caminhavam com patas traseiras, visto que se fossem colocados na sua posição anatómica, as patas dianteiras arrastariam o corpo, não comandando as patas traseiras. Ou seja, os resultados não foram obtidos na posição biomecânica normal do corpo em questão; sem o robot e o apoio subjacente, encontrariam os mesmos resultados?; os resultados seriam idênticos no caso de outras lesões traumáticas?

Aqui fica demonstrado que “nada é impossível, basta acreditar” (Christopher Reeve). 
E que o chocolate tem um enorme poder motivador :-)


Bibiografia

Courtine G. et al – Restoring voluntary control of locomotion after paralyzing spinal cord injury. Jun/2012. Science, vol. 336

Hernándeza, J.; Torres Espína A.; Navarro X. - Adult stem cell transplants for spinal cord injury repair: current satet in preclionical research. 2011 Set; 6(3): 273-87


Coutine G. et al – Transformation of nonfunctional spinal circuits into functional states after the loss of brain input. 2009. Nature Neuroscience, vol 12 

Uma história sobre implantes mamários de silicone e doenças do tecido conjuntivo

Carlota Veiga de Macedo

As doenças do tecido conjuntivo são processos inflamatórios e degenerativos mais ou menos difusos. Têm manifestações muito diferentes. Geralmente são de origem idiopática mas costumam estar relacionadas com problemas de índole auto-imune.



Aqui só vai haver referência às doenças auto-imunes, já que só destas reza a história.

Seguem-se quatro exemplos mais vulgares:


Lúpus eritematoso sistémico

Doença multissistémica cujos sintomas principais são febre, mal-estar, inflamação nas articulações, inflamação no pulmão (pleurisia), inflamação dos gânglios linfáticos, dores pelo corpo (por causa das inflamações), manchas avermelhadas e úlceras na boca (aftas).


Esta doença, num estado mais avançado, promove a acumulação de complexos imunes (lesão wire-loop) no glomérulo podendo levar a uma falência renal.




Síndrome de Sjögren

Doença que afecta glândulas exócrinas, como as salivares e lacrimais. Os sintomas principais são secura da boca (xerostomia) e dos olhos (xeroftalmia). Adicionalmente poderá haver secura da pele, da mucosa nasal e vaginal. Outros órgãos afectados podem ser: rins, pulmões, fígado, pâncreas, cérebro e vasos sanguíneos.


Esta imagem é de uma pequena glândula salivar com acumulação de linfócitos:



Artrite Reumatóide

Doença caracterizada pela inflamação crónica das articulações.


Nesta imagem histológica podemos ver a substituição do tecido cartilagineo por tecido inflamatório:



Esclerodermia

Doença onde o processo envolve um aumento de tecido fibroso, principalmente na pele.



Também afecta os pulmões resultando numa fibrose pulmonar difusa intersticial e alveolar.


Agora já tendo algumas noções sobre que tipo de doenças que vão ser focadas já se pode iniciar o relato de um assunto que moveu muitas pessoas, gastou muito papel, e direccionou muitas investigações cientificas.

Esta história inicia-se nos EUA onde em 1992 após milhares de queixas de mulheres com implantes mamários que passaram a sofrer DTC, a FDA limita a utilização nos EUA para pós-mastectomias, doenças congénitas e substituição de implantes com rupturas.

Essas queixas levaram a processos judiciais onde muitas mulheres foram indemnizadas com vários milhares de dólares.

Em tribunal a Ciência, apresentando várias provas da inexistência de relação entre este tipo de doenças e a colocação de implantes de silicone, foi desacreditada, prevalecendo a ideia do público em geral e dos Media.

Em 1995, a Dow Corning Corporation entra em insolvência devido a ser processada por cerca de 19 0000 mulheres.

Dezenas de artigos científicos foram publicados refutando a ideia do aumento de risco de DTC e a FDA pede parecer à National Academy of Sciences.

Em 1999 o painel da National Academy of Sciences afirmou que os implantes NÃO aumentava o risco de DTC, cancro da mama, doenças imunitárias ou outro tipo de patologias.

Em 2006, passados 7 anos do parecer da National Academy of Sciences, e depois de mais outras dezenas de artigos científicos de revistas de muito boa reputação, a FDA levantou a limitação da utilização dos implantes mas com reservas, pedindo monitorização do pós-operatório com duração de 10 anos a pelo menos 40 000 mulheres.

Fica a dúvida, porquê destes 15 anos de limitações, excesso de zelo, ou dificuldade em admitir o erro? Será também por considerarem uma futilidade tal procedimento para as responsabilidades que daí poderiam advir? Mas nesse caso não seriam as mulheres a decidir? Não deveria ser um direito das mulheres, através de consentimento informado, a colocação destes mesmos implantes?

Como conclusão podemos dizer que os implantes mamários de silicone são seguros. Também podemos reflectir acerca do frágil equilíbrio entre as opiniões, boatos, regulamentações e factos entre os Media, Governo, Ciência e Público em geral. 

Nunca nada vem de modo isolado, tudo está integrado num conjunto de influências e factos, uns verdadeiros outros não.


Bibliografia

Autoimmunity and Immune Complex Diseases, Robert C. Mellors, M.D., Ph.D.
Immunopathology, http://www.medpath.info/

The management of Sjögren's syndrome. Clio P Mavragani, Niki M Moutsopoulos and
Haralampos M MoutsopoulosNature Clinical Practice Rheumatology (2006) 2, 252-261
doi:10.1038/ncprheum0165

Science on Trial: The Clash of Medical Evidence and the Law in the Breast Implant Case
by Marcia Angell, M.D., June 1996 by W.W. Norton & Co. (London, New York).

Beware: P.R. Implants in News Coverage, By Laura Flanders, January/February 1996


The Magazine of FAIR FDA's 15-year false alarm, By Steve Chapman, December 04, 2006, Chicago Tribune 
http://www.igc.apc.org/fair/extra/

http://en.wikipedia.org/wiki/Breast_implant

Antinuclear autoantibodies in women with silicone breast implants .Press RI, Peebles CL,
Kumagai Y, Ochs RL, Tan EM.Source, Lancet. 1992 Nov 28;340(8831):1304-7.

Panel discounts implant disease risk.Kaiser J. Science. 1999 Jun 25;284(5423):2065-6

Meta-Analyses of the Relation between Silicone Breast Implants and the Risk of Connective-Tissue DiseasesEsther C. Janowsky, M.D., Ph.D., Lawrence L. Kupper, Ph.D., and Barbara S. Hulka, M.D., M.P.H.N Engl J Med 2000; 342:781-790 March 16, 2000

Silicone and scleroderma revisited.Lidar M, Agmon-Levin N, Langevitz P, Shoenfeld Y.
Lupus. 2012 Feb;21(2):121-7

Silicone breast implants and connective tissue disease: no association. Lipworth L, Holmich LR, McLaughlin JK. Semin Immunopathol. 2011 May;33(3):287-94. Epub 2011 Jan 10.

sábado, 14 de julho de 2012

Modulação eléctrica e o poder da mente

Nuno Craveiro

O artigo seleccionado para apresentação desta semana, com o título “Corticostriatal plasticity is necessary for learning intentional neuroprosthetic skills”, foi publicado on-line na revista Nature, uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo, em Abril de 2012. Este artigo, co-autorado por um Português, apresenta os resultados de uma experiência bem-sucedida sobre a capacidade do cérebro para controlar sozinho próteses mecânicas.

Iremos perceber ao longo desta noticia de Blog, como os cientistas conseguiram ensinar ratos de laboratório a controlar uma prótese mecânica, cirurgicamente implantada no cérebro dos mesmos.

O objectivo da experiência era colocar cirurgicamente uma prótese mecânica nos “ratinhos” e motivá-los na aprendizagem do controlo da dita prótese. Para isso os cientistas trabalharam uma capacidade do sistema nervoso central (SNC) conhecida como plasticidade. O SNC do ser humano possui cerca de 100 bilhões de neurónios. Estes comunicam entre si através de ligações, sinapses. O mapa de ligações é responsável pelas características e capacidades individuais de cada ser humano. Uma vez estimulados, os neurónios geram impulsos de natureza elétrica e libertam iões e substâncias químicas que ao serem lançadas nas sinapses estabelecem ligações entre eles. A cada novo estímulo, a rede de neurónios reorganiza-se, o que possibilita uma enorme diversidade de respostas. Assim, quando um individuo é exposto a novos estímulos, o SNC tem a capacidade de estabelecer novas conexões ou reorganizar-se e, quando é o caso, aprender novas habilidades. Esta capacidade parte do principio de que o cérebro não é imutável, uma vez que a plasticidade neural permite que uma determinada função do/no SNC possa ser desenvolvida em outro local do cérebro como resultado da aprendizagem ou do treino.

De entre as habilidades, contam-se os movimentos finos e grosseiros. Este artigo mostra que os ratos foram capazes de “aprender” a controlar uma prótese mecânica, que funcionou como uma extensão nova do corpo. A prótese era um ponteiro que apenas se movimentava para a esquerda ou para a direita. E para a controlar os ratos deveriam conseguir iniciar movimentos grosseiros (esquerda ou direita) e posteriormente realizar o controlo “fino” desses movimentos, parando o ponteiro em posições precisas.

Vamos então perceber como isto foi possível:

Animais
Foram utilizados na experiência 6 ratos machos Long-Evans (com peso médio de 250 gramas).


 Fig 1 – Ratos Long-Evans utilizados na experiência


 Próteses mecânica, sua implantação cirúrgica e funcionamento
Foram implantados cronicamente nos cérebros dos ratos 2 electrodos ipsilateralmente. Cada eléctrodo continha 16 micro eléctrodos que foram inseridos nas zonas M1 e DS. A zona M1 corresponde ao córtex motor primário em conjunto com o córtex pré-motor. As craniotomias foram seladas com cianoacrilato e os ratos anestesiados com isoflurano. Foi ainda permitido que os ratos recuperassem da cirurgia durante 10 dias.

Fig 2 – Implantação cirúrgica dos eléctrodos

Os eléctrodos foram inseridos de modo a medirem a actividade da camada V (neurónios piramidais). 


Fig 3 – verificação histológica da implantação dos eléctrodos na camada V (neurónios piramidais)

A informação da actividade e local dos potenciais gerados no córtex foi “lida” pelos eléctrodos e “refinada” através de uma aplicação informática. A aplicação informática “limpou” o ruído presente nos sinais gerados pelos eléctrodos e enviou a informação para um aplicador de sinais que transmitiu os mesmos à prótese mecânica.


A prótese mecânica consistiu em um ponteiro que se poderia movimentar em 2 sentidos (esquerda e direita). O movimento da prótese era dependente da intensidade do potencial gerado no córtex. Para que os ratos conseguissem ter a percepção da sua actividade no córtex cerebral, os sinais amplificados que obrigavam o cursor a movimentar-se foram relacionados ao mesmo tempo com a produção de um som. Assim, potenciais maiores originavam um movimento para a direita e um som agudo e potenciais menores originavam um movimento para a esquerda e um som grave. Quando maior fossem o potencial, maior seria a extensão do movimento do ponteiro (para a esquerda ou para a direita) e ao mesmo tempo maior seria a intensidade do som (agudo ou grave). O som era a única percepção que os ratos tinham sobre as suas acções. Assim, a percepção dos ratos seria antes a capacidade de produzir um som (mais agudo ou mais grave), do que o movimento do ponteiro. Esta foi a forma que os cientistas encontraram para que os ratos tivessem a percepção das suas acções.



Fig 4 – Movimentos do ponteiro e sua associação ao som produzido


A experiência

Os ratos deveriam então controlar a prótese mecânica e para isso deveriam movimentar o ponteiro para a esquerda e para a direita e conseguir parar o ponteiro em locais precisos durante 30 segundos de modo a perceber se o movimento se devia ao acaso ou se era consciente.

O que motivou os ratos a iniciar estes movimentos foi uma recompensa. Assim, sempre que os ratos conseguiam executar o movimento pretendido com sucesso, recebiam uma recompensa. Deste modo, caso conseguissem movimentar o ponteiro com sucesso para a direita e fixá-lo no ponto A durante 30 segundos recebiam uma solução muito doce, caso conseguissem movimentar o cursor para esquerda e fixá-lo no ponto B durante 30 segundos recebiam um “pellet” proteico. De salientar que segundo a percepção dos ratos, eles estariam a executar um som agudo de determinada intensidade (ponto A) ou um som grave de determinada intensidade (ponto B), associando assim as recompensas à capacidade de executar esses sons.

Sendo que os eléctrodos estavam associados ao córtex motor e pré-motor, estes liam potenciais sempre que os ratos se movimentavam. Tendo em conta que os potenciais originavam sons, inicialmente os ratos provocavam um conjunto “caótico” de sons (e movimentos do ponteiro) descordenados. Mas foram percebendo que em determinadas posições (associadas a determinados sons agudos ou graves) recebiam recompensas. Assim, ao final de apenas 3 dias já conseguiam atingir o objectivo e ao final de 10 dias o desempenho era quase perfeito. Isto é perceptível pela figura que se segue que mostra a evolução ao longo do tempo do desempenho dos ratos.


Fig 5 – Resultados – percentagem do número de tentativas correctas em função do tempo de experiência

De modo a perceber que este comportamento não era devido ao acaso, os cientistas desenvolveram vários testes controlo. Assim, deram a todos os ratos a recompensa A (solução doce) até estes a recusarem antes de os submeterem à prova. Deste modo, seria de esperar que os ratos durante a prova apenas quisessem a recompensa B (“pellet”  proteico) e por isso apenas executassem o som grave (ou por outro prisma apenas movimentassem o movimento para a esquerda). Repetiram o teste dando inicialmente a recompensa B de modo a perceber se os ratos apenas iriam “pedir” a recompensa A. Ambos os testes confirmaram que os ratos estavam a executar os objectivos conscientemente.



 Fig 6 – Teste de valorização de recompensas

Em outro teste, os cientistas retiraram ambas as recompensas de modo a perceber se os ratos continuariam a executar os movimentos. Estes deixaram de executar os movimentos quando percebiam que não tinham recompensa. Apenas executavam os movimentos esporadicamente. Quando os cientistas recolocaram as recompensas ao dispor dos ratos, estes recomeçaram a fazer os movimentos objectivados.


Fig 7 – Teste de degradação do estímulo

Os cientistas no final da experiência confirmaram que os ratos atingiram o objectivo inicial da experiência com sucesso e que o faziam de modo consciente. Conseguiam movimentar uma prótese simples, apenas com 2 movimentos possíveis, mas faziam-no de modo a atingir um objectivo secundário que era alimentar-se. Mais, escolhiam a alimentação visto que esta estava ligada a diferentes tipos de movimentos. Esta experiência vem confirmar a capacidade que o cérebro tem para estabelecer novas conexões e com isto conseguir realizar novas habilidades, mesmo que se trate de um “novo” membro como é o caso de uma prótese. Abrem-se assim numerosas possibilidades, apenas descritas em filmes futuristas de ficção científica, como são exemplo o controlo consciente de próteses mecânicas ou a reconstrução de movimentos perdidos devido a lesões da espinal medula ou do cérebro, numa disciplina que irá por certo reunir conhecimentos sólidos da histologia, fisiologia, cirurgia e robótica.


Cada vez mais próximo!!!!  





E assim se finaliza mais uma etapa no Blog Histo é Medicina!!!! Bom trabalho a todos:


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Esofagite Eosinofílica. Um novo diagnóstico… Histológico!

Andreia Rei


A descoberta de uma nova entidade nosológica é sempre um acontecimento entusiasmante. Porque despoleta uma diversidade de novas interrogações e o desafio de alcançar novos e mais ricos conhecimentos.
Partindo das características histológicas do esófago já estudadas, propõe-se a descoberta de uma nova doença esofágica inflamatória, a Esofagite Eosinofílica (EoE).

A Esofagite Eosinofílica é uma condição clinicopatológica caracterizada por inflamação eosinofílica e fibrose submucosa circunscrita ao esófago. Representa uma doença crónica, mediada pelo sistema imune, caracterizada clinicamente por sintomas de disfunção esofágica e histologicamente por inflamação com predominância de eosinófilos.
Em 2007 foi publicado um consenso de recomendações clínicas e histopatológicas de diagnóstico da EoE, revisto em 2011, com o objectivo de clarificar o estado da investigação bem como orientar os clínicos para o diagnóstico.
Mediante um crescente reconhecimento nosológico, a doença tem sido mais diagnosticada e por conseguinte começa a revelar-se mais prevalente. Considera-se que afecta em estimativa >1/1.000 indivíduos, mais frequentemente do sexo masculino e crianças, de raça caucasiana. O diagnóstico fidedigno é realizado por endoscopia digestiva alta e biopsia da mucosa esofágica, que deve apresentar uma infiltração de eosinófilos de pelo menos >15 eosinófilos por campo de grande aumento. É sugerido um padrão familiar que pode ser importante na manifestação da doença. Em pelo menos metade dos pacientes está presente uma história de atopia, alergia alimentar, asma, eczema ou rinite alérgica. Estes indicadores contribuem para a hipótese de se tratar de uma perturbação alérgica induzida por sensibilização antigénica em indivíduos susceptíveis. A literatura documenta um importante papel dos alergenos alimentares tanto na patogénese como no tratamento da EoE. A apresentação clínica varia com a idade do doente: na criança pequena pode cursar com atraso do desenvolvimento e recusa na deglutição, enquanto em crianças mais velhas surgem queixas de vómitos, regurgitação e dor retroesternal. Nos adolescentes é frequente surgir dor retrosternal em queimação e dispepsia. No adulto surge comumente disfagia e impactação alimentar, bem como pirose, muitas vezes refractária a Inibidores da Bomba de Protões (IBPs).
Existe uma sobreposição não completamente compreendida mas relevante entre EoE e Doença de Refluxo Gastro-Esofágico (DRGE) que pode confundir e adiar o diagnóstico. Têm surgido esforços científicos no sentido de diferenciar estas duas patologias no que respeita a características clínicas, endoscópicas e histológicas. Dellon et al. (2009) aponta alguns factores que parecem distinguir a EoE, nomeadamente: maior densidade eosinofílica; desgranulação dos eosinófilos; idade mais precoce de surgimento da doença; presença documentada de alergias alimentares; sintomas de disfagia; presença de anéis esofágicos, exsudados e manchas focais na endoscopia; ausência de hérnia do hiato. Para além da DRGE, é necessário fazer diagnóstico diferencial da EoE com gastrenterite eosinofílica, anéis esofágicos e estreitamentos esofágicos.
As características endoscópicas encontradas na EoE, reveladas na figura 1, incluem: A. múltiplos anéis circulares. Podem estar presentes: exsudados punctiformes, sulcos lineares, manchas focais esbranquiçadas e estreitamento esofágico.

Fig. 1: Achados endoscópicos na EoE (Harrison, 18th edition).

Em termos de características histológicas, as figuras 2 e 3 revelam as características mais frequentemente encontradas. 


 Fig. 2: Características histológicas da mucosa esofágica na EoE (Liacouras et al., 2011). 
A. mucosa esofágica normal; B. grande densidade eosinofílica; C. Eosinófilos dispostos superficialmente; D. Microabcessos eosinofílicos.
Fig. 3: Características histológicas da mucosa esofágica na EoE (GI Motility online May 2006)
a. Eosinófilos com disposição superficial; b. Microabcesso eosinofílico.

Outras características histológicas que podem estar presentes incluem: desgranulação e grânulos eosinofílicos extracelulares; hiperplasia das células basais; espaços intercelulares aumentados; fibrose da lâmina própria. 

Claro que muito está por descobrir…
Estes são alguns caminhos para desvendar a patologia: clarificar as características patognomónicas; compreender a patofisiologia de outros fenótipos presentes, nomeadamente com responsividade aos IBPs; identificar biomarcadores úteis para o diagnóstico; compreender o curso da doença e como lidar com as complicações; assegurar a importância de tratar doentes assintomáticos; investigar a eficácia de algumas terapêuticas praticadas.

Para mais informação, consultar:
Liacouras CA, et al. Eosinophilic Esophagitis: Updated consensus recommendations for children and adults. J Allergy Clin Immunol. 2011 Jul;128(1):3-20.

Dellon ES, et al. Clinical, endoscopic, and histologic findings distinguish eosinophilic esophagitis from gastroesophageal reflux disease. Clin Gastroenterol Hepatol. 2009 Dec;7(12):1305-13

Atkins D, et al. Eosinophilic esophagitis: the newest esophageal inflammatory disease. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2009 May;6(5):267-78

Images In Clinical Medicine: Eosinophilic Esophagitis. N Engl J Med 2007. 356;20.

Harrison´s Principles of Internal Medicine, 18th edition

Boas descobertas!

Será que a bioengenharia descobriu a cura para a calvície?

Fabiana Chyczij

Uma equipa de investigadores japoneses desenvolveu uma nova técnica através da utilização de células estaminais presentes na matriz dos folículos pilosos e que têm a capacidade de regenerar totalmente o pêlo. 
Publicado na última edição da revista Nature Communications, o trabalho é um passo para o fim da calvície.



Os cientistas trabalharam com dois tipos de células estaminais dos folículos, células da papila dérmica e células epiteliais, e após cultura celular, implantaram estas células em ratinhos sem pêlos nem bigodes, e observaram o crescimento dos pêlos ao fim de 14 dias.


Além disso, os folículos capilares que se desenvolveram tinham ligações nervosas, glândulas sebáceas e fibras musculares associadas, o que permite que os pêlos se ericem, como acontece quando temos frio. Tal como os folículos naturais, a equipa de Takashi Tsuji verificou ainda que os novos folículos originavam ciclos de crescimentos e de morte dos pêlos.
O próximo passo, será a realização de ensaios clínicos em humanos, o que acontecerá dentro de 3 anos.
Este estudo, acreditam os cientistas, é um avanço no desenvolvimento da próxima geração das terapias regenerativas para substituição de órgãos danificados por doenças, lesões ou envelhecimento.


Bibliografia

Toyoshima K. et al. Fully functional hair follicle regeneration through the rearrangement of stem cells and their niches.Nature Comunications. April 17, 2012. 3:784

Ross, M., Paulina, W., Histology – a text and atlas, 6th Edition, Lippincott Williams & Wilkins, a Wolters Kluwer business, 2011, Philadelphia.


Transplante de ilhéus de Langerhans

Margarida Silva


O artigo seleccionado para apresentação desta semana, com o título “Update on islet transplantation”, é uma revisão publicada em 8 de Maio de 2012 que nos apresenta a evidência mais recente sobre o transplante de ilhéus de Langerhans em doentes com patologia diabética. Este artigo assume particular interesse, visto que é da autoria de Michael McCall, membro do programa “Clinical Islet Transplant Program and Department of Surgery” da Universidade Alberta no Canada, um dos maiores centros de transplante de ilhéus no mundo.

O pâncreas é uma glândula com funções endócrinas e exócrinas, estando estas últimas directamente envolvidas na função gastrointestinal. O pâncreas endócrino que corresponde apenas a 1-2% do total, é constituído por aglomerados de células especiais denominadas ilhéus de Langerhans. Recorrendo a corantes específicos, é possível distinguir a presença de quatro tipo de células: células beta (produtoras de insulina e amilina), celúlas alfa (produtoras de glucagon), células delta (somatostatina - inibe o pâncreas endócrino) e células PP (poplípeptideo pancreático – inibe o pâncreas exócrino). Uma disfunção a este nível pode conduzir a patologia diabética.


Fig.1- Imagem histológica do pâncreas (componente exócrino e endócrino)

Importa agora caracterizar de um modo sucinto a patologia diabética. A Diabetes mellitus é uma doença metabólica caracterizada pelo aumento anormal de glicose no sangue, causado pela ausência ou défice de produção e/ou ação da insulina, que conduz a sintomas agudos ou complicações crónicas. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2006 existiam cerca de 171 milhões de pessoas com diabetes, apresentando uma tendência crescente e encontrando-se já entre as cinco doenças com maior taxa de mortalidade no mundo.
  
A diabetes apresenta diversas formas clínicas podendo ser classificada em:

  • Diabetes Mellitus tipo 1 (destruição das células beta, o que acarreta ausência de insulina) – de etiologia auto-imune ou idiopática;
  • Diabetes Mellitus tipo 2 (graus variados de secreção e resistência à insulina);
  • Diabetes gestacional;
  • outros tipos específicos – defeitos genéticos na função das células β, defeitos genéticos na ação da insulina, infeções, endocrinopatias, indução por fármacos e produtos químicos, doenças do pâncreas exócrino, entre outros.
A diabetes do tipo 2 é a que apresenta maior incidência, com 85-90% do número total de casos, enquanto a diabetes do tipo 1 apenas representa cerca de 8-10%.
De entre os fatores de risco destacam-se a obesidade, a hipertensão arterial sistémica, o colesterol HDL inferior a 35 mg/dl e/ou triglicerídeos acima de 250 mg/dl, a idade acima dos 45 anos, a diabetes gestacional ou a macrossomia prévia e história familiar de diabetes em parentes em primeiro grau.
A tríade clássica dos sintomas é:

  • poliúria (aumento do volume urinário);
  • polidipsia (sede aumentada, com aumento da ingestão de líquidos);
  • polifagia (apetite aumentado).
Embora este seja o padrão clássico de apresentação da doença, podem surgir outros sintomas nomeadamente perda ponderal de peso, cetoacidose diabética e visão turva.
A longo prazo a diabetes pode conduzir a retinopatia diabética, neuropatia periférica, má circulação e insuficiência renal.
Não existe ainda actualmente uma cura definitiva para a diabetes, existindo sim, diversos tratamentos no sentido de promover uma melhor qualidade de vida. Neste sentido o tansplante de ilhéus de Langerhans surge como uma terapia inovadora e uma estratégia promissora no que concerne à obtenção de uma cura para a Diabetes Mellitus do tipo1. O primeiro transplante de ilhéus de Langerhans ocorreu em 1983 com Watson-Wiliams e Harsant, sendo o pâncreas dador de uma ovelha e o receptor uma criança com cetoacidose (Wiliams 1984). A descoberta da insulina e o início da terapia farmacológica com insulina exógena remeteu durante algum tempo para segundo plano a investigação e aperfeiçoamento de novas formas de tratamento. No entanto, embora muitos progressos tenham sido alcançados no que concerne à obtenção de um perfil farmacocinético mais fisiológico da insulina, existe ainda uma pequena percentagem de doentes que apresentam flutuações intensas e inesperadas, que podem conduzir a hipoglicemia diabética grave (hipoglicemias assintomáticas que representam risco de vida).

O candidato a este tipo de transplante apresenta diabetes do tipo 1 há mais de cinco anos, idade superior a 18 anos, função renal normal, peso não superior a 60 kg, com crises frequentes de hipoglicemia severas e medicados com menos de 30 unidades de insulina por dia.
O transplante de ilhéus consiste na remoção dos ilhéus de Langerhans do pâncreas de um dador. Na grande maioria dos casos os ilhéus de Langerhans são removidas de um dador morto. O processo é complexo pois os ilhéus representam apenas 1 a 2% do total do pâncreas sendo o restante 98 a 99% formado por tecido exócrino. O procedimento para isolamento dos ilhéus envolve a injeção de enzimas digestivas, nomeadamente a colagenase, no pâncreas do dador. Posteriormente por etapas de centrifugação e após separação dos ilhéus, estas são submetidas a testes de sobrevivência, funcionalidade e avaliação da capacidade de secreção de insulina.
Após o processo de purificação/isolamento dos ilhéus e respetivos testes de função, estas são inseridas no recetor pela veia porta em direção ao fígado onde se acomodarão e passarão a produzir insulina. A cirurgia tem uma duração média de 40 minutos, com recuperação rápida. A cirurgia não é isenta de riscos, podendo ocorrer trombose da veia porta, hemorragia intra-abdominal ou peritoneal, dor abdominal, alteração das provas de função hepática e anemia.
A grande desvantagem deste procedimento consiste na imunossupressão a que o doente transplantado tem de ser submetido. A terapia com imunossupressores apresenta frequentemente efeitos adversos associados. De entre os que trazem maior morbilidade aos doentes transplantados, os mais comuns são: neutropenia, linfopenia, leucopenia, anemia, vómito, diarreia, elevação da creatinina, infeções, herpes simples, úlceras de mucosas, febre e pneumonia. Para que o transplante de ilhéus se possa tornar numa terapia com uma relação benefício/risco favorável, é exigido que os benefícios do transplante consigam superar os riscos da imunossupressão.
Uma forma de evitar a imunossupressão nos doentes transplantados é a administração de células encapsuladas. A dificuldade deste processo está em encontrar um material que permita o microencapsulamento das células e neste sentido.
Para além dos riscos associados à imunossupressão, o transplante de ilhéus é um pocesso dispendioso e em regra são necessários vários dadores cadáveres por cada transplante, de modo a que o número de células injetadas no recetor seja suficiente para produzir insulina nas quantidades desejadas.
O primeiro caso de independência total de insulina foi realizado por Scharp et al em 1990, com duração de um mês, renovou o interesse pelos transplantes de ilhéus. A investigação prosseguiu e culminou na publicação do protocolo de Edmonton em 2000 que aumentou o interesse por esta área ao propôr:

  • o uso de iunossupressão sem recurso a esteroides;
  • o transplante de uma massa maior de ilhéus(11.000 IEQ/Kg do doente);
  • não realização de cultura antes do transplante ser efectuado.
Nos últimos 12 anos, mais de 750 doentes com diabetes do tipo1 foram já alvo deste procedimento.
Os dados mais recentes põem em evidência que a taxa de sucesso (medida pela independência de insulina) é de 27% aos 2 anos após transplante. Observa-se um declínio na independência de insulina até aos 8 anos após o transplante, sendo que é mantida a produção de peptídeo-C e a proteção completa para crises hipoglicémicas em 70% dos receptores. Aos 3 anos a percentagem de independência de insulina está próxima dos 50%.
A monitorização pós transplante é importante para avaliar o sucesso do procedimento, mas também como ferramenta no auxílio à gestão da terapêutica a aplicar. É, contudo, um procedimento difícil. A monitorização pós transplante pode ser feita de diversas formas. A biópsia em regiões aleatórias do fígado só é bem-sucedida em cerca de 30% das tentativas. Além disso o tempo de preparação e análise das biópsias é longo. A Ressonância Magnética Nuclear (RMN) com recurso a compostos paramagnéticos adicionados aos ilhéus transplantadas, é um exame que nos apresenta uma boa resolução espacial dos ilhéus mas que carece de eficácia a longo prazo. A este exame acrescem ainda os problemas derivados de doses elevadas de ferro no organismo. A tomografia por emissão de positrões (PET) apresenta maior especificidade e sensibilidade relativamente à RMN e consegue identificar a perda de ilheús no pós-transplante imediato.
Após transplante as células necessitam de um forte suprimento sanguíneo e elevada tensão de oxigénio. A perda precoce de ilhéus pós-transplante e a dificuldade de monitorização do enxerto conduziram à procura de novos locais para transplante (Fig. 2).



Fig.2 – Locais alternativos para realização de transplante de ilhéus


Em resumo o transplante de ilhéus é um procedimento em desenvolvimento, como alternativa para o tratamento da Diabetes Mellitus tipo 1 que está na fronteira entre o experimental e o clínico. É uma terapia celular na qual as células são implantadas em território diferente do fisiológico. O desafio é aperfeiçoar este processo para obter os mesmos resultados que no transplante de pâncreas. 



Bibliografia

Update on Islet Transplantation.
Michael McCall and A.M. James Shapiro
Cold Spring Harb Perspect Med 
Published online May 8, 2012